As Vantagens de Ser Artista Mulher

Vania Abreu Oficial
4 min readOct 8, 2023

Fui educada como menina.

Fonte: Pinterest

Cresci preocupada com comprimento de saias, decotes.

Fui educada para sentar com pernas fechadas e jamais me deitar num sofá ou estar deitada na presença de um homem.

Tive paradoxalmente muita liberdade para brincar, um quintal cheio de árvore, não conheci maquiagens, manicures e não existia o mundo da estética para consumo.

Apesar de ter vivido minha adolescência na década de 80 e sua estética ser mais aberta a cabelos cacheados, corpos sem próteses, sem suplementos e procedimentos estéticos de todos os tipos, o espírito desta década foi da sensualidade ou do sexo, e as mulheres continuavam a serem julgadas e analisadas com rigor.

Num “mundo” pós-guerras, pós revolução cultural, parecia que o espírito da época era de amor e sexo e muita alegria, estou sendo abrangente, eu sei, mas

Bem, cresci sem crítica ao machismo devidamente, a não ser a do trabalho e estudo, que previa um plano de carreira para a independência financeira das mulheres, mas “quase todo resto” era bem parecido com os tempos da minha mãe, digo de educação sexual, afetiva, e especialmente na equidade dentro do casamento.

Seria necessário um texto muito mais profundo e longo para detalhar tantas nuances da misoginia, do machismo, do patriarcado tecido há séculos.

Neste outubro rosa, me propus a falar do feminino que habita em mim e como tenho recebido a luta feminista deste tempo.

Só me dei conta do tanto que atravessei sustentando esse lugar de solidão, de cobrança e de obrigações, nos últimos vinte anos.

Percorri a minha adolescência como uma fase muito confusa e doída. Ingressei na vida de adulta, também muito confusa.

Muito do que achava que era só meu, que me trazia aquela angústia que beira um diagnóstico de “inadaptabilidade” veio ganhando contornos de gênero, deste lugar feminino que afirmava, que as mulheres eram muito difíceis, que homens eram muito mais legais que mulheres, da própria competitividade que foi construída (ainda é), e que nos colocava umas contra as outras, dentre tantas nuances tão bem incutidas em nós, que aceitamos todos esses lugares, quase como um castigo que merecíamos.

Lembro do quanto precisei pensar nas roupas que iria vestir para qualquer reunião de trabalho, mesmo no ambiente artístico. Vale pontuar que o mercado que ingressei como um caminho natural, para quem estava naquele tempo especialmente, era o do carnaval, portanto é bom lembrar (esclarecer) que era um ambiente predominantemente masculino, de empresários, músico e donos de blocos. Reuniões, almoços, jantares, festas em que estava implícito, um lugar para as mulheres cantoras, que ficava entre o encantamento e a sedução, de maneira muito tênue, como parte da simpatia que selava o interesse pelo pacto de trabalho.

Me senti muitas vezes constrangida, com receio de encontros que pudessem passar do ponto.

Me senti, algumas vezes, numa vitrine e não num palco.

Considerando minha educação e minha personalidade que gostava (gosto ainda) de uma certa discrição, era uma violência ter que me preocupar tanto com a imagem, e tão pouco se falar da música, ou do que dela importava. Haja visto que artistas mulheres são cobradas de "novos" cortes de cabelo, novos visuais e muito mais produções, que os artistas homens que sequer passam uma "base" e são cobrados por imagens novas.

Ser cantora me exigia “tornar-me desejável” e tantas vezes pensei, se isso era mesmo liberdade ou de novo, o machismo que dando uma volta em mim, me fazia acreditar que eu estava sendo livre, sendo o objeto que desejava. O ambiente artístico, de fato, é menos formal, há mais abertura para diferenças, mas é parte, é machista, é corporativista entre músicos, é competitivo e cheio de vaidades.

É um trabalho duro se rever e sair deste ciclo. É um trabalho longo de muitas gerações de mulheres, desconstruir, cada detalhe que sutilmente destruiu nossa autoestima, nossa capacidade de produzir, criar e pensar, que apagou nossa participação no mundo, para que sigamos servindo aos homens.

E para mim, a parte mais dura e difícil é a chave de não precisarmos, nos masculinizar para alcançarmos a equidade e respeito, devidos, como mulheres. E trago esse feminino que ultrapassa a discussão de gênero na atualidade, falo do feminino que deve estar em cada um de nós.

Estou me reeducando para ser outra mulher.

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Vania Abreu Oficial

12 discos de carreira|diversas participações em trilhas sonoras para cinema, teatro e televisão| Produziu 04 Álbuns| 01 Livro infanto-juvenil